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Título del texto editado:
“Vida de Diogo do Couto, cronista do estado da Índia e guarda mor da Torre do Tombo della”
Autor del texto editado:
Faria, Manuel Severim de (1583-1655)
Título de la obra:
Discursos varios políticos
Autor de la obra:
Faria, Manuel Severim de (1583-1655)
Edición:
Évora: Manoel Carvalho, 1624


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Vida de Diogo do Couto, cronista do estado da Índia e guarda maior da torre do Tombo della


Tem tanta força as obras dos homens doutos para fazer estimar seus autores em toda a parte, que não somente ganhão com particular afeição as vontades dos que os vem, mas ainda levão a pos si os desejos dos ausentes para pretenderem sua comunicação. Estes me fizerão procurar, com cartas desde este reino, a amisade de Diogo de Couto na Índia, e agora me obrigão a que ponha em lembrança a notícia que alcancei de suas cousas, assi por cumprir em parte neste ofício com o que lhe devo, como por entender que com isso faço uma obra agradável a todo este reino, de que, pelo muito que trabalhou no serviço público, com razão é tido por merecedor de outras aventajadas memórias.

Foi Diogo do Couto filho de Gaspar do Couto e de Isabel Serrão de Calvos, pessoas nobres, e ela foi filha de Vasco Serrão de Calvos, por cuja via ficava Diogo do Couto segundo primo daquele insigne pregador e grande religioso, o padre Luis Alvarez, da Companhia de Jesus. Nasceu Diogo do Couto em Lisboa no ano de 1542, estando seu pai, Gaspar do Couto, em serviço do infante dom Luis, a quem o dera el rei dom Manoel. Por esta razão entrou Diogo do Couto, como teve idade, no serviço do infante o qual o mandou estudar em Lisboa, e de onze anos começou a ouvir gramática entre os primeiros estudantes do colégio de Santo Antão da cidade, que foi o primeiro colégio que a religião da Companhia teve em toda Europa. Seu mestre na língua latina foi o padre Manoel Alvares, célebre humanista e autor da Arte da gramática que hoje se lê em todas as universidades e estudos que a Companhia tem a seu cargo. A Retórica ouviu do padre Cipriano Soares, que compôs a Retórica perque se ensina esta arte nas escolas da Companhia. E, se é verdadeira aquela sentença que o primeiro fervor é motivo da sabedoria e a excelência dos mestres, com razão se podem ter em muito as obras de Diogo do Couto, pois além de serem nascidas de seu grande engenho, foi ele cultivado por tão célebres e doutos varões daquele tempo.

Acabados os estudos da humanidade, parou Diogo do Couto na continuação das escolas, porque ainda então se não lião em Lisboa mais que as letras humanas, e assi ficou continuando no serviço do infante, o qual, mandando algum tempo depois o senhor dom António, seu filho, ao mosteiro de Benfica para ouvir a filosofia do santo varão frei Bartolomeu dos Mártires, que depois foi arcebispo de Braga, vendo a boa e natural habilidade que já em Diogo do Couto se descobria, lho deu por condiscípulo. Aprendeu Diogo do Couto deste insigne mestre não somente as artes liberais, em que ele foi eruditissimo, mas juntamente as virtudes que nele mais resplandecião, como bem o mostrou depois na temperança, modéstia e piedade que em toda sua vida guardou, assi no estado de soldado como no de cidadão, sem lhe as delícias da Índia poderem fazer mudança nos costumes em tam largos anos como teve de vida.

Falleceo o infante ao tempo que Diogo do Couto acabava a Filosofia, e pouco depois desta perda recebeu a segunda com a morte de seu pai; e, assi, cortando-se-lhe o curso de suas esperanças, foi constrangido a mudar estado e, deixando as letras, seguiu as armas, a que seu ânimo não pouco inclinava. E, como já naquele tempo não havia outra conquista senão a do Oriente, por quanto el rei dom João III tinha largado os lugares de África, sustentando somente aqueles que podião servir de fronteira de Espanha, determinou passar a Índia, como o fazia então a mor parte da nobreza de Portugal, por nesta empresa terem muitos em breve tempo ganhado honra e proveito, o que sempre assi acontecera se os que depois vierão quiserão continuar no valor e virtudes dos primeiros, que aquelas partes passarão e não seguirão os vícios da sensualidade e avareza com que corromperão aquele tão bom procedimento antigo.

Embarcou-se Diogo do Couto no ano de 1559. Militou na Índia oito anos, achando-se nos mais dos feitos assinalados de seu tempo, mostrando com particular valor que as letras não impedem, antes favorecem, as armas, como derão a entender antigamente os gregos na imagem de Apolo, a quem pintavão armado de arco e setas, e o veneravão juntamente por deus das ciências. Cumpridos dez anos de milícia contínua, tornou ao reino a requerer o prémio de seus trabalhos, e, ainda que chegou a Lisboa quando com maior força ardia o mal de peste, que vulgarmente se chama «grande», foi brevemente e bem despachado. Com este despacho se partiu logo para a Índia, onde se casou na cidade de Goa com Luisa de Melo, pessoa nobre, cujo irmão foi o padre frei a Deodato da Trindade, da religião de Santo Agostinho, que depois, cá no reino, lhe assistiu a impressão das suas Décadas.

Tanto que o estado de cidadão pacífico e livre das ocupações da guerra lhe deu lugar para se lograr do ócio, tornou a renovar no ânimo os antigos estudos das letras humanas, e, assi por estas como por sua cortesia e boa condição, se fez mui conhecido na Índia e amado de todos os doutos, nobres e curiosos, e até dos príncipes pagãos daquelas partes.

Foi Diogo do Couto mui douto nas matemáticas e, particularmente, na geografia; soube bem a língua latina e italiana, nas quais compôs alguns poemas, e assi na nossa vulgar, em que teve particular graça ,tudo obras líricas e pastoris, de que deixou um grande tomo de elegias, églogas, canções, sonetos e glosas. Teve particular amisade com o nosso excelente poeta Luis de Camões, o qual o consultou muitas vezes e tomou seu parecer em alguns lugares dos seus Lusiadas, e a seu rogo comentou Diogo do Couto este seu heroico poema, chegando com os comentários até o quinto canto, o qual não acabou de todo por outros impedimentos que lhe ocurrerão. Porém, nem por isso deixão de ser muito estimados estes seus fragmentos, e em poder de dom Fernando de Castro, cônego de Évora, está o volume original deles, que foi de seu tio dom Fernando de Castro Pereira, a quem Diogo do Couto o enviou, por ser particular amigo seu.

Sucedendo el rei dom Filipe I na Coroa destes reinos, como era príncipe tão prudente e que sempre trazia nos olhos o bem comum de seus vassalos, desejou de mandar proseguir a história da Índia do tempo em que a deixou o nosso João de Barros, e que se continuassem as suas Décadas com o mesmo título e estilo, pelo grande aplauso com que as tres primeiras forão recebidas em toda Europa. Para tam grande empresa foi nomeado a el rei Diogo do Couto, ainda que estava morador em Goa, abrangendo tam longe a fama de suas partes. Encarregou-o el rei desta obra com título de cronista da Índia, a qual Diogo do Couto aceitou animosamente, e a trouxe a tão perfeito fim como depois se viu.

A primeira cousa em que pôs a mão foi a Décima década, por começar do dia em que o mesmo rei foi jurado e recebido naquele estado, e assi lho mandar Sua Majestade, mais, segundo parece, por pagar primeiro a dívida em que estava aos vassalos que o servirão naquelas partes que pelo gosto que Túlio confessava ter ao historiador Luceio de ver suas próprias acções escritas em história ainda em vida sua. Por esta razão, acabou a Décima década concluindo-a com o governo de Manoel de Sousa. Estimou el rei muito esta obra, e a agradeceu a Diogo do Couto por carta sua, encomendando-lhe de novo que, tornando atrás com a história, continuasse as Décadas do tempo em que João de Barros as deixara. Obedeceu Diogo do Couto e, com grande brevidade, compôs a Quarta década e assi a Quinta, Sexta e Sétima, Undécima e Duodécima. A Oitava e Nona acabou no ano de 1614, no qual, querendo-as mandar ao reino, enfermou tão gravemente que esteve desconfiado da vida. Com esta ocasião lhe desaparecerão estes dous volumes de casa, tomando-os alguém para se depois aproveitar dos trabalhos alheios. Mas foi Deus servido de dar saude e forças a Diogo do Couto —que já neste tempo era de setenta e dous anos— para, das lembranças que lhe ficarão e da memória, que a tinha felicíssima, ajuntar outra vez o que naquelas duas Décadas tratava, de que fez um só volume, recopilando nele as cousas de maior importância e relatando as maiores mais largamente, com que se remediou este furto, de maneira que, quando alguma hora aparecerem, assi pela ordem como pela matéria, publicarão claramente seu autor.

Destas Décadas estão somente até agora impressas a Quarta, Quinta, Sexta, Sétima, porém a Sexta sucedeu um grande desastre, e foi que, estando a impressão acabada em casa do impressor, se acendeu o fogo nas casas e arderão todos os volumes, escapando somente seis deles, que a caso estavão já em o convento de Santo Agostinho de Lisboa. As mais Décadas não sairão ainda a luz, e quando faleceu Diogo do Couto, ficarão em poder do padre frei a Deodato da Trindade, seu cunhado.

O estilo que nestas Décadas guardou Diogo do Couto é muito claro e chão, mas cheio de sentenças com que julga as acções de cada um e mostra as causas dos sucessos adversos e prósperos que naquelas partes tiverão os portugueses. Porém, ainda que nesta parte pode ser com outros comparado na verdade do que escreve, que é a alma da História, no que trata dos príncipes do Oriente, nos costumes daqueles povos e remotas províncias, na situação da sua verdadeira geografia levou a muitos conhecida ventagem, como se pode claramente ver das suas Décadas, nas quais se mostrão os erros que nestas matérias tiverão os que antes dele escreverão as cousas do Oriente.

Para esta notícia, além da grande aplicação com que se deu ao estudo dos geógrafos antigos e modernos, lhe valeu a assistência que teve naquelas partes por mais de cinquenta anos, nos quais viu, por razão da milícia e comércio, muitos daqueles reinos, e depois, sendo cidadão de Goa, cabeça daquele estado, pôde bem alcançar a verdade dos sucessos que refere, pois naquela cidade assistem todos os visoreis, e della saem todas as armadas e a ella se tornão a recolher; de maneira que recebeu as informações dos mesmos que se acharão nas empresas e a tempo que as testemunhas de vista que na mesma cidade havia os obrigavão a falar verdade. A esta razão se lhe acrescentou outra, que foi a do ofício de guarda maior da Torre do Tombo do estado da Índia, o qual cargo lhe deu el rei dom Felipe I quando mandou ordenar este arquivo pelo visorei Matias de Albuquerque, no qual se recolherão todos os contratos de pazes, provisões, registos de chancelaria e os mais papeis de importância que costumavão andar em poder do secretário e de outras pessoas daquele estado, com que lhe ficou uma notícia original de tudo o tocante a aquela história, donde com razão podemos ter esta por não menos verdadeira que a de Políbio e Salústio, a quem este desejo levou de Grécia a Itália, e de Itália a Numidia, para verem os sítios das províncias de que avião de escrever e alcançar as informações dos feitos de que tratavão, dos quais —por serem passados muitos anos antes— de força lhe faltaria a notícia em muitas partes essenciais, tendo juntamente o menos tempo mudada a face das terras e lugares, como cada dia vemos.

Não é menos de estimar esta obra por sua grandeza, porque além de escrever Diogo do Couto noventa livros nestas nove Décadas, número a que raros escritores chegarão, foi toda esta história escrita por ele novamente e não tomada de outros autores, no que se mostra bem a grandeza e valor de seu engenho, a que não chegou Lívio, ainda que lhe excedeu no número dos volumes, por quanto a maior parte de sua história foi tomada de outros, e principalemnte de Políbio, o qual também confessa de si que das obras que muitos escritores tinhão publicado de cada conquista dos romanos, em particular compusera a sua Universal História. Mas Diogo do Couto foi o primeiro que tirou a luz a história da Índia do tempo em que a deixou João de Barros, se não foi o que até o princípio do governo de Nuno da Cunha tinha escrito Fernão de Castanheda. Por quanto a Quarta década de João de Barros, que acaba com o governo do mesmo Nuno da Cunha, saiu muitos anos depois.

Para aperfeiçoar esta obra, e dar uma consumada notícia do Oriente, compôs outro livro a que chamou Epílogo da história da Índia, no qual, tratando de cada fortaleza nossa, aponta as cousas principais que ali acontecerão, as em que faltarão os nossos historiadores e outras que de novo forão sucedendo; de maneira que neste volume está sumariamente tudo o que toca a história, comércio e policia oriental, acomodando o estilo a este compêndio com muita clareza e brevidade . Não foi menos eloquente no estilo oratório, porque, além do que se vê nas suas Décadas, que não é pouco, por insigne nesta faculdade foi escolhido para fazer as práticas aos mais dos governadores e visoreis que em seu tempo entrarão em Goa; mas isto não era só pela linguagem e ornato de palavras com que falava, mas pela verdade e desengaño com que as dezia, das quais algumas andão impressas que não desdizem de seu autor.

Acompanhou a Diogo do Couto desde seus primeiros anos um grande zelo do bem público da pátria que, junto com o entendimento e experiência de que era dotado, lhe fez considerar as causas de alguns inconvenientes que havia no governo da República, e principalmente no estado da Índia, onde ele assistia e onde, por ausência dos reis e excessos dos ministros, ião as desordens em maior crescimento. Para remediar este mal, vivendo ainda el rei dom Sebastião, compôs um livro a que chamou O soldado prático, no qual introduziu, per modo de diálogo, um visorei novamente eleito falando com certo soldado velho da Índia, que andava na corte em seus requerimentos, para se informar das cousas que lhe importavão para a jornada e do mais que tocava ao governo da fazenda real e milícia daquele estado; e em todas estas cousas aponta, com cortesão estilo e brevidade, o que se debe seguir ou evitar, dando os exemplos e razões fundamentales, de maneira que pôde ser uma excelente instrucção para aquele governo. Porém antes de aperfeiçoar esta obra, lhe foi furtado o original dela e, sem mais o poder haver as mãos, chegou a este reino sem nome de autor, onde se trasladarão algumas cópias, que forão tidas em grande estima dos que as puderão haver. Sendo disto advertido no ano de 1610 por um amigo seu, tornou a reformar esta obra, ou quase a fazê-la de novo, porque introduziu por pessoas do diálogo um governador que tinha sido da Índia com um soldado prático dela, ambos em casa de um despachador, tratando sobre as cousas daquele estado, trazendo-as ao tempo presente com tanta ponderação e juizo que não somente pode servir de norte aos que o governarem, mas em todo o tempo de claro desengano das cousas dele. Esta obra dedicou ao marquês de Alenquer, e o original está na livraria de Manoel Severim de Faria, chantre de Évora, a quem ele o mandou.

Este zelo da honra da pátria lhe fez escrever um livro contra o que compôs o padre frei Luis de Urreta, dominico, da história e policia do reino da Etiópia, a que vulgarmente chamamos Preste João, no qual o padre, com a pouca notícia que tinha do Oriente, e sem ler as histórias da Índia nem deste reino —como quem escreveu entre os bosques e delícias de Valença, sem ver mais que um só homem que o informou e a quem creu—, disse muitas cousas contra toda a verdade da História, sendo todo o seu livro uma obra fabulosa e temerária. E, posto que os padres Fernão Guerreiro e Nicolau Godinho, da Companhia, tinha-o respondido ao padre Urreta com particulares apologias, os memos padres da Companhia de Goa pedirão a Diogo do Couto respondesse também, pela honra deste reino, o que ele fez, estando já quase com o corpo na sepultura, mas com tanto vigor de ânimo que bem parece que, se lhe faltavão as forças corporais, que as do entendimento iam sempre en maior perfeição. Este livro trouxerão os padres da Índia ao arcebispo de Braga, dom frei Aleixo de Meneses, per ordem de seu autor.

Com estas ocupações não pôde acabar de todo outra empresa que deixou começada para luz do comércio da Índia, e que tratava de todos os tempos e monções em que se navega para todas as partes do Oriente, e dos pesos, medidas e moedas, com todas as mais cousas que a este particular pertençião.

Nestas tais obras gastou Diogo do Couto a maior parte de sua idade, exercitando o talento que lhe foi entregue, como bom e útil servo, até o ano de 1616, no qual, sendo de 74 anos, o levou Deus para si, sábado a 10 de Dezembro, para lhe dar o prémio que suas obras merecerão. Foi Diogo do Couto homem de meia estatura, de alegre e venerável presença, olhos vivos, cor atereciada, o nariz, algum tanto aquilino; mui laborioso, como o mostra a multidão de seus escritos, teve grande conselho, e por essa causa era chamado muitas vezes dos visoreis a ele nos negócios de maior importância. Era pouco cobiçoso, que para homem que viveu tantos anos na Índia é grande maravilha; e, assi, foi mais rico de partes e merecimentos que de fazenda, posto que esta lhe não faltou em seu estado, com que sempre passou honradamente.

De sua molher, com que viveu largos anos, teve uma só filha que morreu antes de casar, donde não ficou dele generação, o que os antigos julgavão por infelicidade; porém, não tal que lhe possa tirar a bemaventurança que os mesmos antigos tinhão por grande, que era escrever feitos alheios e dar matéria para que se escrevessem os seus próprios, o que ele fez na sua milícia e história, compondo e pelejando. Pelo que com razão lhe puserão aquele dístico ao pé de seu retrato, que, como estátua imortal, lhe imprimirão nas suas Décadas, que diz:

Exprimit effigies, quod solum in Caesare visum est,
Historiam calamo tractat, et arma manu.

FINIS






GRUPO PASO (HUM-241)

FFI2014-54367-C2-1-R FFI2014-54367-C2-2-R

2018M Luisa Díez, Paloma Centenera